segunda-feira, 1 de outubro de 2012

As Horas de Abel



__________________________________________________________

Sinopse

A pequena Abel ganha um livro peculiar, com ele, move-se pelas horas do dia encontrando-se consigo mesma, até ficar presa no tempo. Assim, espectadora de si, observando-se a viver a vida que é sua, tenta voltar ao seu tempo para ser protagonista de sua história. 





Um_roteiro_de_Tiago_Kickhöfel

tiagadatz@gmail.com






AS HORAS DE ABEL


Roteiro_3°trat.











Pelotas_2011


_________________________________________________________________


 AS HORAS DE ABEL

Cores ocres, pardacentas, diluídas em sombras nos ambientes internos. Luz branca de sol em harmonia com a palidez da pele de Abel, claridade dos olhos e cabelos nos ambientes externos. Uma estética dialógica de tons quentes e frios que se referem ao diálogo do frescor da infância, representada pela fotografia de ‘dia claro’ e tons suaves de verde (olhos e jardim) com o calor do aconchego da velhice, representadas nas sombras sobre tons quentes (cortinas, flores secas, chão de madeira), que contribuem para a sensação do vagar por memórias ocultas.

FADE OUT

CENA #1 - INT. QUARTO DE ABEL – DIA – 2h30min

ABEL, menina de aproximadamente seis anos de idade, pálida, de cabelos claros e olhos verdes está em seu quarto mórbido, decorado com vasos de flores secas e móveis demasiadamente grandes, penteando sua boneca de porcelana sentada na cama. Está ansiosa para ir brincar no jardim, onde a primavera anuncia sua chegada.

V.O.
Abel estava ansiosa. A primavera anunciava sua chegada no canto dos pássaros, na brisa, nos raios mornos de sol. E tudo isso estava no jardim...

Abel se levanta, larga a boneca e vai até a janela.

V.O. (cont.)
...Onde Abel queria estar.

OBS: A narração é feita pela Abel velha e diz respeito à última cena.

Abel admirando o jardim da janela, alcançada com a ajuda de uma cadeira.

V.O. (cont.)
Mas ainda faltavam algumas horas até que a casa voltasse à vida e lhe permitissem sair.

Abel desce da cadeira e pega sua boneca, vai até o criado mudo onde há uma caixinha de música; dá-lhe corda. Dança com a boneca em movimentos sutis. Ajeita algumas flores. Quando passa na frente do espelho o reflexo é de uma SENHORA que, em vez da boneca, segura o livro “As Horas de Abel”.

Abel volta ao espelho onde vê o seu reflexo. Vagarosamente vai tocar o espelho. Quando quase toca, a música da caixinha pára e ouvem-se passos vindos do corredor e Abel corre para a cama e se deita com um sorriso.

V.O.
Os passos no corredor aumentaram sua agitação. Em minutos ia ter com os pássaros. Para tanto, deita-se a fingir o sono devido.

Abel deitada de costas para a porta de olhos abertos. Quando a porta abre, a menina fecha os olhos.

V.O. (cont.)
Mas os passos eram pesados demais, não seriam da Dona Cora nem da sua mãe. Eram tão pesados quanto a curiosidade de Abel de saber de quem eram.

Plano Detalhe dos ouvidos de Abel seguidos por planos minimalistas (com som direcionado) de sutis movimentos das flores, da caixinha de música desligada, cortinas e som ambiente da rua. Respiração de Abel vai surgindo em fade.

V.O.
Afinou os ouvidos em total silêncio; a sua própria respiração era mais alta que qualquer ruído no quarto. Mas havia ali uma presença, Abel podia sentir. O peso do quarto era outro. Foi quando lembrou da sua boneca...

Abel abre os olhos. Atrás dela o relógio projetado sem ponteiros. Levanta-se como a surpreender quem estivesse no quarto.

V.O. (cont.)
...que tomou coragem de surpreender quem quer que estivesse no quarto.

Está sozinha e, ao lado da boneca, está o livro ‘As Horas de Abel’, livro pesado e grosso marcado de tempo, (este livro) capa de casca de árvore, muitas páginas amareladas.

Abel sentada estática por um momento observando o grande relógio projetado. Num átimo engatinha até a boneca que pega assustada. Abraça a boneca e olha o livro.

V.O.
Estava sozinha. Mas aquele relógio de onde surgira? E o livro, de onde? Enigmático, cheirando à terra molhada.

Abel pega o livro, observa a capa e folheia-o. Pára em uma página que lê pausadamente. O escrito se sobrepõe ao rosto de Abel.

Som da babá (Dona Cora) cantarolando a música da borboleta.

ABEL
...A pequena gesticula uma borboleta voando com a canção, confundindo-se com o sonho que estava prestes a entrar.

A menina folheia mais páginas, pára em outra, a lê (ainda as páginas estão sobrepostas ao rosto da criança)

Som da ação descrita pelo diálogo (pássaros e acidente).

ABEL
... Esticando o braço para alcançar o ninho com adoráveis e barulhentos filhotes de passarinhos, desequilibra-se e cai sobre as bonecas.

Abel acaricia uma cicatriz no cotovelo.

Continua folheando o livro. Um maço de folhas escapa e descobre uma página com um relógio desenhado (o mesmo da projeção) sem ponteiros. Acima deste está escrito “meu tempo é minha pele”, abaixo desta frase “descubra-me com cuidado”. Após essa página, muitas em branco. Abel fecha o livro e fica pensativa.

V.O.
Era a vida da pequenina ali escrita. Estava perplexa. “Meu tempo é minha pele”...

Abel, após vagar o olhar pela janela, relógio projetado na parede e livro, retira uma lasca da casca da capa e folheia o livro até a página que está o relógio. Divide a lasca em duas e usando-as de ponteiros marca 2h30min. Quando coloca as lascas no desenho elas se fundem a ele.

Ponteiros aparecem no relógio projetado. Em velocidade crescente fazem círculos. Som dos ponteiros; vento distorcido, agudo; tic-tacs; Pena escrevendo. Pelo som machucando, larga o livro e cobre os ouvidos. Abel assustada fecha os olhos; FADE IN. O som se esvai aos poucos, voltando o som ambiente (caixinha de música). A menina abre os olhos. No relógio projetado estabilizam-se grandes ponteiros apontando 2h30min.

Ao olhar pro espelho, Abel vê-se na ação anterior, quando estava prestes a tocar ao espelho e é interrompida pelo som dos passos no corredor.

V.O.
Assustada. Imóvel. Abel viu-se fora de si...

A menina vai pra cama; Abel/livro desvia, percebendo que a menina não a nota, observa-a. Olha para a porta

V.O. (cont.)
Mas se os passos fossem de alguém da casa? E surpreende-se as duas meninas?

Som dos passos mais próximos.

V.O. (cont.)
Abel lembrava-se do eu acontecera aos gatinhos.

Abel/livro arranca outra lasca da capa e cria novos ponteiros que se fundem ao relógio marcando 4h.

Mais dois ponteiros surgem no relógio projetado. Esses novos fazem o movimento acelerado em círculos, os dois antigos seguem no mesmo ritmo.

O ruído da distorção temporal. Quando o som se estabiliza, o mesmo acontece com os novos ponteiros do relógio que marcam 4h.

Audio gain de risadas vindas do jardim. Abel vai até a janela e se vê balançando. Volta e abre a porta do corredor.



CENA #2 INT – CORREDOR – DIA – 4H

Slow motion d’Abel correndo pelo corredor comprido de cortinas balançantes.


CENA #3 EXT – JARDIM – DIA – 4H

Jardim muito bem cultivado, com predominância da cor verde, Um verde pálido. Em uma árvore estará o balanço que a menina brinca: alto e com correntes de folhas nas cordas.

Abel/livro chega ao jardim diminuindo o passo, acanhada. (música “Torre das Mercês” – Axial) e observa-se brincando feliz no balanço; sorri ao admirar-se.

V.O.
Naquele momento todas as cores eram Abel. A outra era o vago. As cores que balançavam em graça sublime eram influenciadas pela incomensurável felicidade da menina que brincava...

Abel/livro senta-se entristecida com o livro no colo.

V.O. (cont.)
Então Abel, perdida entre a inveja e a saudade, quis voltar a ser aquela pequena...

Abel abre o livro no relógio, vira algumas páginas e percebe que estão descritas as ações anteriores, terminando na narração anterior. Arranca outra lasca da capa (que já está pela metade) e volta para o relógio que observa pensativa por instantes.

V.O. (cont.)
Mas qual era o seu tempo? Como voltar?

Abel cria novos ponteiros: 7h.
Na transição temporal a menina tenta abrir os olhos. Subjetiva mostrando distorções na visão. FADE IN. Som normalizando-se. Abre os olhos. Abel/livro está sozinha. Balanço parado.




CENA #4 INT – QUARTO – DIA 7H

Quarto vazio com o relógio projetado com três horários correntes. Entra Abel que confere o quarto vazio. Ao sair, a câmera a acompanha pelo corredor. Pára quando sai de uma das portas CORA (a babá). Abel entra no cômodo que ela saiu, o banheiro.


CENA #5 INT – BANHEIRO – DIA 7H

Abel está tomando banho em uma banheira, os cabelos bóiam na superfície da água; Abel/livro a admira. Deixa o livro no banco ao lado da banheira. Entra vestida na banheira. Abel/livro olha para a outra.

A senhora que havia saído antes da Abel entrar retorna, cobre a outra Abel, enxugando-a com uma toalha e a tira do quarto. Abel/livro fica olhando pra porta.

Abel pega uma nova casca e aponta novos ponteiros no relógio: 6h. Início do ruído

Plongée d’Abel mergulhando na banheira, olhos abertos.  Subjetiva da visão subaquática com ruídos abafados pela água.

INSERT Relógio projetado com o quarto par de ponteiros se estabilizando.

Plongée d’Abel/livro levantando a cabeça da banheira como que a tomar ar. A banheira está vazia e ela está seca. Depois de um tempo parada, pega o livro e sai.


CENA #6 INT – CORREDOR – ENTARDECER – 6H

Abel olha pros dois lados com os olhos miúdos por causa do sol de forte cor laranja. Vai pro quarto, verifica que está sozinha; relógio com o quarto par de ponteiros projetado; volta pro corredor, olha pro banheiro, vai pro jardim.


CENA #7 EXT – JARDIM – ENTARDECER – 6H

O jardim está vazio; olha em volta e abre um sorriso aos poucos. Som de pedra caindo na água.

INSERT – pedrinhas lançadas na água.

OBS: Referência à Jan Svankmajer, Alice, 1988

Abel corre abraçada no livro em direção ao riacho, onde está a menina jogando pedrinhas.

Abel/livro, visivelmente chateada, retira a última lasca de casca da capa, folheia o livro até o relógio que está quase todo coberto de ponteiros e fica pensativa.

V.O.
Abel, receosa por ter acabado a pele do livro enche-se de esperança ao pensar que tudo aquilo não deveria passar de um sonho. Decide acabar com o dia indo para a hora de dormir.

Abel coloca as últimas lascas nos números que apontam 9h.


CENA #8 INT – CORREDOR – NOITE - 9H

Abel/livro andando pelo corredor ouvindo no quarto a babá cantar. Vai andando devagar até lá. Abre a porta do quarto sem fazer barulho.


CENA #9 INT – QUARTO – NOITE 8H30MIN

A babá está cantando à outra Abel uma canção de ninar afagando os cabelos da menina. A babá está sentada ao lado da cama, Abel deitada gesticulando uma borboleta. Abel/livro desapontada vai até a cama e deita-se junto a outra Abel. Abel/livro adormece. FADE IN.

BABÁ (CORA)
“Borboleta pequenina
Arco-íris escondido
Num casulo adormecido
Quem me dera ver nascer
Tuas asas borboleta
Para não mais esquecer
Que há vida
Dentro da vida
A vida toda
Pra sempre, vem”





CENA #10 SONHO D’ABEL

Planos subjetivos da boneca mostrando Abel durante o dia. Estes flashbacks farão a menina lembrar-se da hora que estava pra poder voltar. As frases da narração seguinte sobrepor-se-ão em crescente velocidade até a menina acordar.

V.O. (sobrepostas)
Se ao menos soubesse a hora... 7 horas... A sua hora... 4 horas... Não a da Abel que via... 9 horas... Que lhe causava tanta admiração... 6 horas... O livro... os passos... o jardim... 5 horas... o banheiro... 1 hora... o quarto... 2 horas e meia!


CENA #11 INT – QUARTO DE ABEL – MANHÃ

FADE OUT. Abel abre os olhos. O relógio está circulando os seus seis pares de ponteiros. Abel o observa por um tempo, em seguida se levanta apressada, pega o livro, vira pra capa, mas ela está totalmente descascada.


CENA #12 EXT – RIACHO/JARDIM – MANHÃ

Abel retira uma lasca da árvore, quebra-o e tenta colocar no relógio desenhado no livro, mas eles caem. Outra árvore. Outra tentativa. Abel fica cabisbaixa, um plano seqüência a acompanha ate o corredor.


CENA #13 INT – CORREDOR – MANHÃ

Abel entra no corredor e, ao longe, vê-se sair de uma porta e entrar em outra. As páginas do livro começam a passar rapidamente. Uma luz ilumina o rosto de Abel. Música. Sobrepostas, várias faixas etárias de Abel passam pelo corredor e entram em portas distintas, as idades aparecerão de maneira crescente, de forma que a última será uma senhora que percorre todo o corredor passando por Abel.

Abel fecha o livro e o abraça. Baixa a cabeça. Abel ouve a velha e caminha devagar até ela, no quarto.

OBS: Pode ser uma edição paralela com a velha deitada e falando sozinha. Ponteiros podem ir desaparecendo de acordo com a narração da velha.

ABEL/VELHA O.S.
Deitaram ambas a repousar, a memória e a velha. Estavam exaustas. A memória se ia aos poucos, a velha lembrava e a lembrança morria, ao passo que só as memórias que conseguiram fugir sobreviveram.


CENA #14 INT – QUARTO NOVO DE ABEL – MANHÃ

O quarto está modificado. Há muitas fotografias por ele, ainda flores secas. (se os ponteiros forem sumindo aos poucos, só um par de ponteiros restará). Abel/livro fica parada na porta olhando a velha falar.

A velha olha para Abel e fala como que buscando na memória.

VELHA
Eu lembro de ti...

Suspira cansada. Olhando pra cima... 

VELHA (cont.)
O que vem... depois?

Abel olha para a senhora. Abre o livro nas últimas páginas; penúltima página, as últimas palavras escritas serão os últimos diálogos da velha. Abel virá a página e acaba o livro. Ela o fecha, olha para a velha que sorri até ‘dormir’.


FADE IN














Nenhum comentário:

Postar um comentário