segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Tá bom pra peixe

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Sinopse

Seu Piano é um velho bêbado, esquizofrênico, porém simpático, que todas as quartas-feiras pontualmente às 20h transforma a árvore da frente do bar "Esquina dos Gordos" numa rádio que sempre apresenta o mesmo programa, “Tá Bom pra Peixe”.



Tá Bom pra Peixe
Tiago Kickhöfel


        Seu Piano. Era tudo que ele era, era tudo que sabiam dele, bem, os frequentadores da Esquina dos Gordos sabiam também que bastava ele pedir mais um trago que começaria o programa da sua, digamos, incomum rádio. Mas basicamente ele era o Seu Piano, que todas as quartas bebia mais do que o suficiente pra esquecer o que ele próprio era, talvez seja por isso que nunca abriu a boca pra falar de si ou dos outros. Como ele tinha dinheiro pra pagar aquele e todos os tragos dos últimos três anos, tampouco sabiam. 

Pagou a purinha, agradeceu como de costume e foi-se indo. Os que já estavam bêbados perguntaram em risadas se o programa já ia começar. Seu Piano sempre confirmava - "às oito, ouvinte".

Meio trópego, o homem que já aparentava uns 60 anos de idade mal vividos, dirigiu-se até o salso chorão do outro lado da rua e, tirando o pente de bolso marrom da camisa, deu início ao ritual que há três anos era praticado: usando o tal pente como microfone e a árvore como bengala de apoio, gritou:

"Boa noite, viventes! Mais uma noite bonita e quente de verão e teu amigo, Seu Piano, vem para te fazer companhia. e sem delongas, vamos a nossa primeira ligação. Alô, vivente! Sim... bastante calor. Tá bom pra peixe... mas diga, o que o amigo quer ouvir?... Pode ser Tropeiro Velho? Então já vamos começar com o baixinho de Passo Fundo."

E deu início à cantoria. Algumas pessoas saiam até a porta do bar; nunca se cansavam de admirar a grande aptidão do velho que cantava, cambaleava e nunca caia. Provavelmente ciúme.

O engraçado é que podia estar em temperaturas negativas, como no inverno do ano passado e, para Seu Piano, sempre estava quente e bom pra peixe. 

"Agora vamos ouvir nossos patrocinadores. Sempre lembrando que é por essa gente boa que nosso programa existe" - Seu Piano mexeu em alguns galhos da árvore e, pela primeira vez em três anos, sentou-se no meio-fio da calçada. O dono da Esquina dos Gordos, o único gordo, na verdade, chegou a gritar que o velho vomitaria. O velho apenas olhou pro lugar como quem tenta focalizar as palavras de um livro bloqueadas pelo sono, e levantou-se. 

"Bom, meus amigos. É com grande pesar que anuncio que este será o nosso último programa. Não sei bem como explicar, mas nosso colaborador principal cancelou o patrocínio e sem essa ajuda é difícil continuar, ouvintes. Desculpem. Um forte abraço do grande amigo, Piano. Fiquem agora com Tropeiro Velho do Teixeirinha" - E sumiu dobrando a Esquina cantando bem alto a música que dessa vez não fora pedida por nenhum vivente amigo.
As pessoas no Bar surpreenderam-se. A maioria só sorriu, o Gordo gargalhou. Mas na próxima quarta o Gordo estava só sorrindo, os outros que ali estavam mal conversavam. Na semana seguinte sem o Seu Piano, a metade das pessoas foi embora mais cedo e o Gordo quis ligar o rádio para que ficassem os últimos colaboradores, mas assim que o fez, os homens foram embora e ele foi obrigado a fechar mais cedo. 

Meses depois, os homens que bebiam na Esquina dos Gordos,  juntos dos homens que bebiam no Bar dos Inocentes, lotavam este bar. Grande parte mal conseguia erguer o copo pra pedir mais um trago, mas todos estavam rindo. "Já vai começar, Seu Piano?" - perguntou o Dono do bar, enchendo o copo do velho. Seu Piano levantou o copo em sinal de agradecimento e confirmou, como sempre "às oito, ouvinte".

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